TRANSPOSIÇÕES (2014)
Curadoria e apresentação.
Ensaio fotográfico Transposições (2014).
Artista: Glória Accioly.
• Glória Accioly
• Curadoria
• Fotografia contemporânea
• Performance
• Corpo
• Ritual
TRANSPOSIÇÕES
Da nossa vida, em meio da jornada...
Neste ensaio, Glória Accioly celebra, através da fotografia, um verdadeiro rito de passagem. Nas sociedades ancestrais, ditas primitivas, um tipo de cerimônia ritual semelhante era usado para marcar os momentos mais importantes da vida dos seus membros. Eram momentos ligados a nascimentos, mortes, uniões e separações, mudanças de posição e papel social, enfim, transposições do lugar do sujeito na coletividade. Hábitos antigos eram abandonados e novas atitudes deveriam ser adotadas quando este ciclo antigo se encerrava e outra etapa da vida deveria se iniciar. Às vezes, a transformação na identidade do sujeito era tão radical que chegava a se materializar na mudança do próprio nome. Nas sociedades modernas – em que os ritos que não desapareceram simplesmente, junto com os mitos e religiões antigas, acabaram por se converter em mera formalidade burocrática esvaziada de conteúdo –, essa função de encenação simbólica, tão importante no equilíbrio da vida psíquica do ser humano, passou a ser assumida pelo campo da experiência artística, um espaço sempre aberto à “invenção do impossível”.
O rito encenado por Glória Accioly em Transposições é um tipo de “passagem do meio”, para usar uma expressão cara à psicologia junguiana. Trata-se da mesma fase arquetípica da vida a que Dante Alighieri se refere nos versos iniciais de A Divina Comédia, em que depois de se perceber em meio a uma selva tenebrosa, precisa descobrir maneiras de retomar a verdadeira estrada. Contudo, este é um desafio que cada um precisa aprender a superar ao seu modo: não há um mesmo caminho para dois caminhantes diferentes.
Mas como um enigma que já contém a pista de sua decifração, é em meio à crise de sentido que se criam os novos significados. Para Glória, a fotografia atuou como meio de expressão simbólica, descortinando um novo campo de possibilidades, de ações, representações e autorrepresentações poéticas de si e do mundo. A fotografia é usada aqui tanto como testemunha dessa sua passagem quanto como artifício maquínico para subverter a percepção de sua existência espaço-temporal. É através do olhar da câmera que a artista se reconhece.
Como se dá esse ritual? Através de uma pesquisa de gestos e interações com objetos e o próprio espaço entorno. Antes de analisarmos seus gestos, olhemos essa paisagem, esse ambiente onde acontece a performance para a câmera. Eles parecem trazer em si o contraste da beleza e da dureza, da paisagem idealizada do cartão postal ao cenário inóspito dos canteiros de obra, ou da aspereza da vida nos armazéns e fábricas. Trata-se de um tipo de cais, de doca, com máquinas e embarcações que permanecem impassíveis à da presença humana. No horizonte, ao fundo, as luzes da cidade reforçam o tom da indiferença, mas também deixam alguma esperança... Mais que física, essa paisagem é psíquica e nela, sua presença intempestiva, seus gestos improváveis revelam uma nítida desconexão – que busca novas formas de reconexão –, eivados de surrealidade, pois apontam uma realidade não palpável, plástica, moldável. Assim também é o mundo da arte, esse território desconhecido em que Glória adentra como neófita e se aventura, saindo da sua zona de conforto, numa viagem imaginária em busca de algo que a ajude a transcender.
Seguindo um caminho que explora algumas das trilhas abertas por Francesca Woodman, os sinais gestuais de Glória Accioly expressam um tipo de rendição, ao mesmo tempo em que denunciam a opressão, deixando entrever um forte anseio de libertação. Esse anseio é tanto físico quanto espiritual, é corpo/alma em desdobramento, jogando o jogo do visível/invisível, fazendo-se fantasma sem medo. Corpo fragmentado, duplicado, separado em partes, ao sabor da luz que nele se reflete ou que o atravessa – efeito obtido com a técnica de longa exposição, que provoca o desfazimento da forma fixa e atribui uma qualidade diáfana ao corpo em movimento –, deixando transparecer o espaço que faz fundo à sua figura incerta. Esse corpo diáfano, transparente, desnuda-se da concretude bruta e tateia sua condição mais vaga, destituída de substância, liberta do peso da matéria. Ela quer ser barco, quer ser vela. Seu corpo perde e refaz seus contornos, hibridizando-se com os objetos que o cercam. Como quando cria asas com os motores ou os costados de dois barcos paralelos. Nessa fantasmagoria da presença/ausência, Glória ritualiza uma catarse, um expurgo, uma liturgia de forte carga emocional.
Não se sabe se é sopro de vida ou de morte. Quando os barcos estão cobertos como túmulos, o cais se faz cemitério. Quando a luz da aurora que desponta no horizonte parece regida pelos braços da sacerdotisa, não há como não sentir o bafo do renascimento. Sobretudo, é da perscrutação de outras formas de relação com objetos e espaços que estamos tratando aqui. Na busca de interações imprevistas, um ensaio de metamorfoses.